quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Por que restringir o consumo de bebidas alcoólicas pode ser uma má ideia?


Há um par de semanas atrás um jovem foi encontrado morto na raia olímpica da USP. O jovem desapareceu em uma festa dentro do campus universitária na qual compareceram, segundo os organizadores, cerca de cinco mil pessoas (ver notícia aqui).

Proibição
A resposta oficial imediata da universidade ao evento trágico foi a de proibir as festas no campus -- foi o que fez a direção da Escola Politécnica (ver aqui), nas dependências da qual a festa ocorreu, e até mesmo a direção da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade.


Esse tipo de reação proibitiva não é surpreendente. O Brasil tem um longo histórico de reações hiperbólicas para acontecimentos com resultados fatais como esse. Sempre que um acidente com resultados trágicos acontece, logo surgem aqueles para defender algum tipo proibição. Para ser justo, esse tipo de reação é comum, como o caso dos médicos britânicos que queriam proibir a venda de facas afiadas para diminuir acidentes com as mesmas.

No caso da proibição de festas no campus da USP, é preciso reconhecer que a medida é certa ainda que com as justificativas erradas. Digo que me parece certa porque, segundo a administração do campus, essas festas deixam um rastro de depredação e sujeira para trás, custos para a instituição (e em última instância o contribuinte paulista) pelos quais a USP não recebe qualquer tipo de compensação até onde se sabe. Não me entendam errado: as festas são importantes para a socialização dos alunos e, com todos os riscos que oferecem, são parte importante do processo de amadurecimento dos estudantes. O que está profundamente equivocado é que as entidades que as organizam não arquem inteiramente com os seus custos -- não só os de prover música, comes e bebes etc, mas também os de entregar o espaço cedido para a realização da festa tal como ele foi recebido. Mas meu interesse aqui não é falar em festas, mas sobre o mercado de bebidas alcoólicas. 

Álcool demais faz mal



Não há dúvidas que o consumo de álcool oferece sérios riscos à saúde. Existe uma volumosa literatura médica documentando uma longa lista de doenças cujo início e agravamento estão associados a certos padrões de consumo de bebidas alcoólicas. 

O consumo regular e prolongado de álcool acima de certos níveis é sabido, por exemplo, aumentar consideravelmente as chances do indivíduo danificar o pâncreas, o fígado e até desenvolver certos tipos de câncer. Outras condições médicas, como problemas cardiovasculares e de natureza psiquiátrica, são sensivelmente pioradas pela interação com o álcool (i.e., quando o consumo crônico de álcool se adiciona a outros fatores de risco presentes).  

Não é surpreendente portanto que o consumo de álcool seja considerado como um problema de saúde pública que suscita enorme preocupação da comunidade médica, das autoridades de saúde e da sociedade em geral.

Qual a externalidade do consumo do álcool?



Em seu último relatório global sobre consumo de álcool e saúde, a Organização Mundial de Saúde  (OMS) fornece uma série de indicadores sobre o consumo de álcool no mundo (ver relatório aqui). Segundo as contas da OMS, o consumo nocivo de álcool é responsável por 5.9% das mortes em todo mundo (mais de 3 milhões), o que o torna a quinta maior causa de morte no mundo. 

Diante do que a OMS enxerga como um gigantesco ônus social (volta a esse ponto em seguida), a organização tem sistematicamente recomendado a adoção do que chama de "política do álcool" -- uma série de medidas regulatórias visando a redução do consumo nocivo que englobam desde restrições sobre venda e disponibilidade, passando pela taxação e imposição de preços mínimos, até ações mais “softs” de na área de comunicação (tanto de promover campanhas educativas quanto de exigir restrições sobre as ações de marketing do setor). 

Eu falei com certo ceticismo do ônus social que a OMS calcula porque, ao menos do ponto de vista econômico, a extensão e intensidade dos mecanismos regulatórios impostos sobre o mercado de álcool devem depender da externalidade que seu consumo impõe sobre a sociedade (pode refletir "internalidades" também quando há inconsistências intertemporais como mostra, para o caso do consumo de cigarro, o artigo de Grueber e Koszegi no QJE). E essas externalidades não devem contabilizar o ônus privado que o consumo de álcool causou. Claro que essa conta do que é ônus privado e do que é externaldiade pura não é nem um pouco trivial e, dependendo da extensão do financiamento público do sistema de saúde, possui mesmo uma série de custos de segunda e terceira ordem de difícil identificação e mensuração. 

Mas o fato é que essas ações regulatórias são economicamente custosas -- um fato que me parece overlooked pela OMS e por segmentos da sociedade que parecem endossar entusiáticamente a agenda regulatória da OMS para o setor. E os custos da regulação não são triviais: eles provocam a redução de atividade no setor, com consequências potencialmente adversas de primeira e segunda ordem sobre uma série de outras dimensões (redução do nível de emprego, das receitas governamentais com consequente impacto sobre os serviços médico-hospitalares oferecidos pela rede pública de saúde e chegam até a promover a criação de mercados paralelos onde o álcool comercializado pode ser muito mais nocivo). 

Será que sabemos o suficiente sobre os padrões de consumo de álcool (quanto dele é nocivo?) e sobre suas externalidades para perseguir uma regulação muito pesada do setor?

A experiência de proibição do álcool
De fato, desenhar políticas públicas sem dados muito precisos sobre os padrões de consumo de álcool da população pode ser socialmente custoso. Uma ilustração desse ponto pode ser encontrada de forma mais transparente, por exemplo, na experiência de proibição de álcool nos EUA no século passado. 

Em 1920 os EUA votaram uma emenda constitucional que proibia, em todo o país, o armazenamento, o transporte e venda de álcool. Os políticos americanos de alguns estados estavam tão certos que crime e violência em geral tinha um link causal com o consumo de álcool que resolveram fechar as cadeias logo depois da aprovação da proibição.


A experiência de proibição nos EUA marca o que pode ser considerado um dos mais extensos e significativos experimentos socioeconômicos ligados ao consumo de álcool dos últimos cem anos. O experimento durou treze anos.

O experimento proibicionista do álcool chegou ao fim não porque o consumo de álcool não havia recrudescido como esperado – como a venda era ilegal, não havia dados oficiais sobre consumo; mas porque crescia a percepção de que a proibição, ainda que tenha logrado reduzir o consumo (legal) de álcool, teve uma série de consequências nefastas não previstas – aumentaram no período as mortes por alcoolismo, os homicídios, houve redução da receita dos governos estaduais (fortemente dependente das vendas de bebidas alcoólicas) e aumento da influência de grupos criminosos, envolvidos com o mercado paralelo de álcool, nos órgãos do aparelho policial.


Lembrei-me de um artigo de Jeffrey Miron e Jeffrey Zwiebel (publicado na AER em 1991) onde eles procuram estimar o consumo de álcool nos EUA durante a proibição usando estatísticas relacionadas. Eles encontram que a proibição foi eficiente em reduzir o consumo apenas nos primeiros anos da proibição, com o consumo voltando a ser 60-70% do que era pré-proibição nos anos subsequentes (ver gráfico abaixo. As linhas em vermelho delimitam o período de proibição (1920-1933).

Em vista das consequências adversas que teve, não me parece um salto de fé muito grande acreditar que a proibição do álcool se prolongou por tanto tempo em grande medida porque não havia dados que permitissem uma avaliação minimamente rigorosa do impacto da proibição.

O que sabemos? O estado-da-arte
É claro que com as informações que hoje dispomos, cometer um equívoco regulatório da dimensão do que foi cometido -- como mais tarde se revelou -- pelos reguladores americanos parece improvável. Mas é questionável se os dados sobre padrões de consumo e impacto regulatório de várias medidas que temos (nacionalmente) são bons o suficiente para perseguirmos uma regulação mais pesada como deseja, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde. 


Há dois tipos de problema com os dados existentes. Por um lado, temos os dados de consumo per capita estimados a partir de dados sobre vendas do setor que são ruins porque são incapazes de dar alguma ideia confiável sobre o quanto de consumo nocivo existe. Sem dados precisos sobre o grau de absenteísmo (somado ao estigma social que existe em falar com sinceridade sobre o assunto), é fácil mostrar que essas estimativas de consumo per capita tendem a estar superestimadas. 

Por outro lado temos os dados provenientes de estudos epidemiológicos. Conquanto essas dados são melhores porque fornecem uma "fotografia" de outros momentos da distribuição de consumo de álcool (o que é vital, dado que não é com o "bebedor social" que o regulador está preocupado, mas com o "heavy drinker" que, aliás, a evidência sugere que é insensível a preço, sugerindo que a taxação pesada imposta no setor é inócua no sentido de reduzir consumo nocivo), eles são coletados através de questionários, instrumentos sobre os quais há uma longa literatura empírica documentando sua fragilidade (no sentido que não há qualquer estabilidade e mesmo confiabilidade nas respostas que se extrai desses questionários). Para um sumário dessa literatura, ver esse artigo aqui de Sendhil Mullainathan (Harvard) e Marianne Bertrand (Chicago) (AER P&P 2001).

E agora José?
Não há nada de errado em usar esses surveys -- até que soluções tecnológicas avancem um pouco mais, parece mesmo ser o melhor que os pesquisadores podem fazer. O ponto aqui, todavia, é que dada a limitação dos dados e o conhecimento ainda limitado sobre o impacto de várias políticas regulatórias, é razoável nos questionarmos se possuímos informações acuradas e confiáveis o suficiente para adotarmos medidas custosas sobre cuja eficiência na redução do consumo nocivo e suas externaldiades ainda pouco sabemos. Conviver com certos males, até que estejamos em chão mais firme, pode ser menos custoso do que tentar eliminá-los atirando para todos os lados...

7 comentários:

  1. Acho um equivoco calcular apenas o custo quando não há uma medida do benefício. Não acho que as pessoas bebam sem saber que há risco, mas mesmo assim elas se põem voluntariamente nesta situação de risco. A vida seria muito sem graça se a regulação social visasse apenas reduzir o a chance das pessoas morrerem.

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    1. Agree. E veja que mesmo sem "fatorar" isso, já não me parece haver compreensão sólida do padrão de consumo de álcool (e do custo de várias medidas regulatórias) para justificar uma regulação mais ativa. Se colocar o benefício de beber na conta então...de toda forma sabemos que a taxação de bebidas alcoólicas pouco ou nada tem a ver com suas "externaldiades" e mais com o fato de que sempre foi politicamente mais fácil gerar caixa taxando "sin goods".

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  2. O post menciona o custo material de danos ao campus mas ignora o valor de uma vida humana, e desconsidera a obrigação do diretor da Escola em relação à integridade física dos alunos.

    O argumento a respeito da proibição de festas com consumo de álcool faz referência exclusivamente à proibição geral do consumo de álcool no país, que é uma proposição completamente diferente.

    Se fosse um ensaio de estudante, valeria a sugestão de reescrever completamente, uma vez que a argumentação apresentada não é adequada para sustentação das teses defendidas.

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    1. Obrigado pelo comentário. Por partes:

      "O post menciona o custo material de danos ao campus mas ignora o valor de uma vida humana, e desconsidera a obrigação do diretor da Escola em relação à integridade física dos alunos."

      - De fato. O post ignora essas e muitas outras coisas, dado que não é um tratado sobre o assunto. De toda forma, não é necessário considerar essas outras coisas. Só com o ônus material eu já disse ter sido acertada a decisão de algumas faculdades de suspender as festas. E introduzir essas outras coisas não mudaria isso.

      "O argumento a respeito da proibição de festas com consumo de álcool faz referência exclusivamente à proibição geral do consumo de álcool no país, que é uma proposição completamente diferente."

      - Não entendi. Eu disse algo sugerindo que proibir consumo geral de álcool seria equivalente à proibição de consumo de álcool nas festas da USP? Não é óbvio que essas coisas não são equivalentes?

      "..argumentação apresentada não é adequada para sustentação das teses defendidas."

      - Você tem que me dizer o que entendeu como sendo a tese defendida. Se o sujeito defende que se A então B, mas eu entendo que ele quis dizer que se A então C, então vai mesmo ficar me parecendo que as coisas não fazem muito sentido.

      Para ajudá-lo a não cometer esse equívoco de novo: o ponto do post é questionar se o que temos e sabemos é bom o suficiente para implementar as recomendações regulatórias da OMS para o setor. Meu argumento é que é preciso ser cauteloso com a regulação que a OMS sugere porque os dados são incompletos, ou coletados com instrumentos metodologicamente frágeis; além disso, muita medida tem avaliação de impacto desconhecida ou benefício pequeno ou nulo para o que se quer obter (redução do consumo nocivo e da cadeia de externaldiades que ele gera) -- é o caso, por exemplo, da taxação e das restrições de horário nos pontos de venda.

      De novo e mais resumidamente: Se A (dados insuficientes/frágeis/inexistentes) então B (não regule pesadamente ou maybe at all dado que nada disso é socialmente cost-free).

      Espero que tenha ficado mais claro.

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    2. 1 - Sim, o post pega um assunto e escolhe o aspecto menos relevante.

      2 - O post começa falando sobre a decisão de proibir festas com consumo de álcool na Escola Politécnica. Para argumentar a respeito dessa proibição, o post utiliza argumentos acerca de assunto relacionado, mas muito diferente: a proibição do álcool num país inteiro. O argumento é irrelevante para o ponto levantado.

      O blog é seu, escreva o non-sequitur que quiser. Me divirto lendo, não tenho a obrigação de me irritar explicando os erros em mais detalhes.

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    3. Lamento de novo que tenha entendido o comentário inicial sobre o caso da USP como uma motivação para falar de proibição no país inteiro -- coisa sobre a qual o post não trata (o pouco que fazem já parece demais). Me parece um problema de interpretação de texto que resolver, infelizmente, está além do que posso fazer nesse espaço.

      Obrigado de qq forma por ler o blog. Espero que continue lendo e comentando.

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  3. Não é que o comentário inicial sobre o caso da USP serviu de motivação para falar de proibição no país inteiro. Pelo contrário, a história da Prohibition foi usada para apoiar argumento a respeito da proibição de festas no campus. Nos primeiros 4 parágrafos fica claro que o assunto do post é o consumo de álcool em festas na USP, embora focando no aspecto menos relevante, danos materiais, e não no mais relevante, a segurança dos estudantes.

    Em seguida o post sustenta opiniões a respeito do tema levantado no início usando o caso da Prohibition, apesar de que não são situações comparáveis. Foi leitura instrutiva, apesar da dificuldade que o autor teve em interpretar o próprio texto, ou talvez até por causa dela.

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